O resto, nós já sabemos. A vitória se transformou numa
comemoração coletiva do Brasil a níveis de Copa do Mundo, além de, é claro, ter
virado meme. Fernanda Torres concorria com alguns dos maiores nomes femininos
de Hollywood. Angelina Jolie, Tilda Swinton, Kate Winslet e uma Pamela Anderson
meio perdida ali. Todas já premiadas ou indicadas e com seus nomes já consolidados
na indústria.
Um Cometa Chamado Fernanda Torres
Dito isso, vamos apurar os fatos. Em primeiro lugar, é de
extrema importância enfatizar: Não, o longa dirigido por Walter Salles não usou
recursos da famosa Lei Rouanet. Isso por que a Lei Rouanet é voltada para
eventos culturais. Isto é: Festivais de música, amostras de cinema, exposições,
eventos geeks como a CCXP e por aí vai. A pegadinha que muita gente cai se dá
ao fato de que na Lei Rouanet existe uma pequena verba para audiovisual, quem
em grande parte usa-se para comerciais. Mas o valor é tão baixo, que mal seria
possível comprar uma câmera de cinema. Inclusive, é proibido usar verba de recursos
da lei para filmes desde 2007. Por tanto, nunca, nenhum filme brasileiro será
feito com recursos da Lei Rouanet, é impossível.
Com isso esclarecido, vamos a diante. Sim, Walter Salles é
parte de uma das famílias mais ricas do Brasil. Banqueiro, empresário e acionista,
Salles está em 3º lugar na lista dos diretores mais ricos do mundo, ficando
atrás apenas de Steven Spielberg e George Lucas. A diferença é que Salles é o
único que não vive exclusivamente de filmes, apesar de ser um bom diretor. Não
se enganem, para um homem como Walter Salles, cinema é hobby, é diversão. O que
não é problema nenhum, afinal, para ser diretor de cinema é preciso ser rico.
Infelizmente, é a realidade. Mais do que dinheiro para produzir um bom filme,
Salles tem poder aquisitivo para bancar o marketing do longa. Capitalismo né?
É importante também dizer que o cinema brasileiro não precisa
de nenhum tipo de validação internacional para atestar sua qualidade. Filmes
brasileiros são ótimos e temos excelentes diretores, diretoras, atores e atrizes.
O problema é que a cultura brasileira só é valorizada quando ganha algum prêmio
de reconhecimento internacional. Vamos lembrar que durante a pandemia, os
artistas foram atacados e menosprezados por uma extrema-direita que, ao mesmo tempo que desferiam críticas, passaram seus meses de quarentena maratonando séries
e filmes na Netflix e afins.
Nas redes sociais, o bolsonarismo tentou boicotar o filme
desde seu lançamento. O que não deu certo. Ainda Estou Aqui, e a vitória de
Fernanda Torres no Globo de Ouro representa tudo aquilo que o bolsonarismo mais
repudia. Um longa anti-ditadura, adaptado de um livro cujo autor é filho de um
ex-deputado torturado, morto e desaparecido em 1971, por agentes da ditadura. Como
se não bastasse, levou um prêmio americano, para quem os bolsonaristas batem
mais continência do que o próprio país. É a fatia da população que nega a
existência de uma ditadura no país. Mas é como a própria Torres disse em seu
belíssimo discurso de agradecimento; “esse prêmio é a prova de que arte pode
resistir em tempos difíceis como esse”.
Mas e o Oscar hein?
Quanto à premiação de maior prestígio cinematográfico
mundial, vamos por partes. A vitória de Fernanda Torres não garante nada e isso
deve à vários motivos. O Globo de Ouro, por natureza, oferecia uma brecha maior
para Fernanda, porque a premiação faz a divisão entre produções de drama e de
não-drama. Além disso, os votantes são jornalistas, ou seja, pessoas que não
fazem parte da indústria cinematográfica. E aí reside talvez os dois maiores
desafios de Salles e Torres nessa jornada. O Oscar é votado por pessoas da
indústria do cinema e já não divide filmes em gêneros. Até por esse motivo,
precisamos ter os pés bem firmes no chão quanto à indicação de Torres na
premiação.
Outro grande revés, e esse, bem mais recente, foram os incêndios
que devastaram Los Angeles nos últimos dias. Os indicados ao Oscar, que seriam anunciados
dia 17, foi adiado para dia 19. O SAG Awards, prêmio do Sindicato dos Atores de
Hollywood teve o anúncio de seus indicados também adiado. A data da cerimônia
por enquanto se mantém no dia 23 de Fevereiro. Aqui, ainda vale lembrar: o SAG
Awards é votado pelos atores e atrizes de Hollywood é mais usado como termômetro
para o Oscar do que o Globo de Ouro, e infelizmente, Torres não foi nem
indicada. O que dificulta o favoritismo para um possível Oscar.
Os incêndios também atrapalham a campanha de Salles e
Torres. Isso por que hoje (5ª feira, dia 9), Torres seria entrevistada por
Jimmy Kimmel, o talk-show americano de maior audiência nos EUA. Cancelado por
conta das queimadas. E Salles faria uma exibição do filme para alguns votantes importantes
do Oscar, e que teria como apresentador Guillermo Del Toro, o premiado diretor
e roteirista mexicano. Também cancelado. Ambos eventos seriam cruciais para
promover o filme nos EUA, com mais salas exibindo o longa e, portanto, mais
pessoas assistindo. Para piorar a situação, essa 6ª feira (dia10) é último dia
permitido para os artistas fazerem suas campanhas em favor de seus filmes.
Agora, resta esperar para que esse prazo seja também prorrogado.
Entretanto, independente dos incêndios, sempre houve uma
outra barreira que Fernanda teria e terá que quebrar. A barreira da nacionalidade.
Acontece que sempre temos que analisar PORQUE o Oscar premia as pessoas que
premiam. Em 1999, quando Fernanda Montenegro perdeu, é preciso checar o contexto.
Naquele mesmo ano, quem ganhou melhor ator foi o italiano Roberto Benigni por A
Vida é Bela. E o que isso significa? Que o Oscar pode até premiar um ator não americano,
mas se ele for europeu, especialmente do leste europeu, melhor. Mas no mesmo
ano premiar uma atriz latina? Poxa Brasil, aí vocês querem demais né? Pois bem,
essa foi e é até hoje a lógica do Oscar. A própria Fernanda Montenegro chegou a
comentar isso em entrevistas.
A presença de Torres no Oscar é mais difícil, a disputa é
acirrada e ela é uma brasileira desconhecida para o grande público americano. O
que com certeza, vai tornar uma possível indicação ainda mais deliciosa de se
comemorar, e se levar a estatueta para casa, poderemos considerar o Brasil
praticamente um hexacampeão.
O Futuro do Cinema Nacional
A coisa mais fácil de achar na internet atualmente, são vídeos
e artigos questionando se Ainda Estou Aqui e Fernanda Torres são a salvação do
cinema nacional. Na opinião deste humilde crítico e cinéfilo que voz escreve,
não, não é a salvação do nosso cinema. Isso por que, acredito que o cinema
nacional não precisa ser salvo de nada. Já falei e falo de novo. O cinema
brasileiro não precisa de uma celebração da indústria da cultura americana para
atestar sua qualidade. O cinema nacional é bom porque é bem feito mesmo. Simples
assim.
A possibilidade de Ainda Estou Aqui ganhar qualquer Oscar,
terá sim um efeito positivo no Brasil. Mas esse efeito pode ser tão imediato
quanto a curto prazo. Estou falando de pessoas que vão assistir mais alguns
filmes brasileiros, especialmente os que tiverem Fernanda Torres e Selton Mello
no elenco. O mesmo pode acontecer com a filmografia de Walter Salles. Mas isso
é passageiro e talvez inspirem jovens atores e atrizes a um dia, talvez, quem
sabe, chegar lá também, mas isso já seria longo prazo.
A salvação do cinema nacional é muito mais profunda e complexa
que isso. Resumindo, ela está nas leis de incentivo à cultura. Nosso cinema
será salvo quando as nossas produções tiverem a mesma quantidade de sessões em
salas de cinema do que o pior filme da Marvel ou de Star Wars. Sessões essas,
em dias e horários de pico. O que não acontece ainda, porque colocar o seu
filme em dia e horário nobre de exibição custa muito caro, não tem público
formado, e o dono do cinema de shopping não lucra. As leis que regulamentam
isso são muito fracas e cheias de brecha que permitem os grandes cinemas (os de
shopping) montem sua grade da maneira que lhe gera mais lucro.
Se Ainda Estou Aqui é alguma coisa, eu diria que um filme-evento.
Um filme que justamente está na boca do povo por conta suas premiações, indicações
e repercussão. Afinal, quantos filmes brasileiros a maioria das pessoas assiste
por ano? No cinema? Estatisticamente, pouquíssimo, quase nada. Percebe onde quero
chegar? Ainda assim, não tem como negar que é preferível um filme-evento, do
que filme nenhum. A jornada de Walter, Fernanda e Selton uniu o país de uma
forma que só vemos em Copas do Mundo. O Globo de Ouro registrou uma de suas
maiores audiências da premiação graças aos “latinos” que eles tanto esnobam. De
nada.
Agora, só podemos torcer pela indicação do filme e de Torres
no Oscar. É cruzar os dedos, acender uma vela, fazer uma macumba. Tudo é
válido. Não é porque não precisamos do selo de aprovação americana que não
podemos torcer pelo nosso país. Se Ainda Estou Aqui ganhar como Melhor
Internacional e/ou Torres for consagrada Melhor Atriz, será lindo, emocionante
e histórico. Fato é que o Brasil não precisa, mas merece e muito. Queremos nos
sentir o Pikachu.