Tudo pronto para o show no Tokyo Dome, a uma hora do início do show, com
50 mil fãs aguardando em seus lugares e a atmosfera pré-show ficando
cada vez mais intensa. John Hammel, assistente pessoal de Paul há longa
data e roadie, descreve cada objeto de trabalho de seu chefe: "Essa é a
Epiphone - a guitarra usada no solo da música 'Taxman' - e esse é o
baixo Hofner, de 1963". Ele levanta o baixo habilmente, afinal, são 40
anos de notável serviço durante shows e passagens de som. "Ele costumava
ter o nome das músicas colado aqui, escritas atrás de um velho maço de
cigarros da marca Senior Service - Paul fez a lista para o show no
Candlestick Park", diz Hammel, referindo-se ao último show público dos
Beatles, que aconteceu em um estádio de Baseball em São Francisco, no
dia 29 de agosto de 1996. "Nós o tiramos porque estava ficando
destruído".
Hammel acrescenta que aqueles são os dois únicos instrumentos históricos
dos Beatles. Mas ainda há muita história acumulada em dois cases de
instrumentos alinhados no chão. Seus dedos escorregam para um violão
acústico Epiphone, "o qual Paul tocou Yesterday no Ed Sullivan Show em
1964". Aquele programa mundialmente famoso, que bateu um recorde de 73
milhões de americanos assistindo à estreia dos Beatles nos Estados
Unidos, o começo de uma febre que comemora seus 50 anos em fevereiro -
isso pode ser chamado de histórico, certo? Não importa, Hammel está
agora mexendo e uma Gibson flame-top da década de 60, "que é uma
guitarra rara, considerando que ela é feita para canhotos. Linda comprou
a guitarra para Paul anos atrás".
Além dos 10 instrumentos entre baixos e guitarras, há um Ukulele de
1920, "que George deu ao Paul, acho que foi quando eles estavam fazendo o
Anthology. E Johnny Depp deu aquele ali para ele", mostrando a guitarra
Baratto Cigar-Box, que Paul usou para gravar 'Cut Me Some Slack', com
os membros do Nirvana, música com a qual Paul ganhou um Grammy ontem. "E
com esse mandolim, Paul escreveu uma música para sua filha Beatrice", a
composição 'Dance Tonight', inspirada pela filha mais nova de Paul, que
hoje tem 10 anos. "Ele a escreveu na cozinha e então fez um clipe, com a
participação da Natalie Portman, usando o instrumento".
Bem-vindo ao mundo de Paul McCartney. Todo passo é recheado de história.
Cada episódio não pode deixar de ter uma citação. Todas as canções
contam uma história e vice-versa.
É novembro de 2013 e estamos no Japão: a última parada da turnê 'Out
There', que vem acontecendo desde maio. De fato, se você considerar que a
'Out There' seguiu o mesmo ritmo que a 'On The Run' (2011-12), que
sucedeu à 'Up And Coming Tour' (2010-11), seguindo a 'Good Evening
Europe' (2009), pode-se dizer que Paul está na estrada regularmente há 4
anos e meio.
Paul tem 71 anos de idade. Ele esteve na estrada - indo e vindo - por 50
meses. "... Por toda minha vida!", Paul interrompe com um forte sotaque
de Liverpool, praticamente pulando do sofá de seu camarim perfumado com
flores.
Com um pequeno esforço, ele se lembra da visita que os Beatles fizeram a
Tokyo. No final de junho de 1966, o avião da banda, vindo direto de
Londres, pousou no aeroporto com uma certa polêmica nacional. Um certo
número de japoneses conservadores era contra o show dos Beatles na Arena
Nippon Budokan. Amados ou não, nenhum grupo deveria desacatar o lar
espiritual do sumô. O clima estava tenso. Cerca de 35 mil policiais
foram contatados para proteger os Beatles, que ficaram efetivamente
presos no hotel durante a turnê de três shows no país.
Mesmo hoje em dia, McCartney ainda fica perplexo ao pensar no ocorrido.
"Bem, nosso pensamento era que não houvesse nenhum esporte merecedor
desse tipo de respeito. Certamente, não com um esporte que envolva
luta!", e ele diz isso como um fã de sumô de boa fé - antes chegar em
Tokyo, Paul foi visto assistindo a uma luta de sumô e virou capa de
todos os jornais do país por causa disso. "Então, a gente não entendia
muito isso. Teve um cara que disse que cometeria suicídio se o show
acontecesse. Nós pensamos: 'isso está indo longe demais'.
Não tão longe quanto as coisas foram na próxima parada dos Beatles: As
Filipinas. Lá, um pequeno desprezo percebido pela primeira-dama, Imelda
Marcos, resultou em um quase tumulto no aeroporto de Manila. Um mês
mais tarde, eles estavam fazendo shows pela America. E apenas duas
semanas depois, eles fizeram seu último show, no Candlestick Park.
"Sim", diz Paul concordando, "nós estávamos fartos daquilo. Achamos que
era o suficiente". Mas isso foi há muito tempo, atualmente, parece que
Paul nunca estará farto de se apresentar ao vivo.
Participamos do backstage por um curto tempo até o show começar, o primeiro de três shows esgotados em Tokyo.
Com um físico nos trinques e o cabelo ajeitado, Paul me cumprimentou com
um 'Yo! Vamos lá!', seguido de um grito 'Dough eatah she mashy tay!',
sua versão rigorosamente ensaiada de 'Sejam bem-vindos!', em japonês.
McCartney usará essa e mais outras frases durantes seus seis shows no
país, para a alegria dos japoneses.
Com um entusiamo incrível, Paul realiza suas performances tocando 36 músicas, em um total de aproximadamente 3 horas de show.
"Sabe, eu não sei", diz ele novamente com seu eterno sotaque de
Liverpool, "eu esperava duas coisas: ficar cansado e exausto, mas isso
não acontece. Isso deve ter algo a ver com o ritmo do show atual. E,
hoje em dia, com esta banda, a audiência é sempre muito receptiva. E
algo a se fazer com essa fama é criar uma... avalanche. Como se eu fosse
o cara que corre na frente a partir dessa avalanche de fama".
O desejo de tocar para as pessoas, diz Paul, é algo que existe dentro
dele desde os tempos em que os Beatles tocavam em Hamburgo, quando eles
viviam de comprimidos para aguentarem tocar durante todo o tempo.
"É aquela coisa de treinar muito, não é? 10 mil horas", diz ele
referindo-se à teoria de Malcom Gladwell, na qual os verdadeiros mestres
de seu ofício devem passar diversas horas praticando. "Acho que há um
pouco disso sim. É tudo o que eu fiz, sob um aspecto. É como eu sempre
ter trabalhado nessa indústria e o fato de eu gostar disso. É como se eu
estivesse em casa".
Numa lembrança mais longa, Paul lembra-se do seu grande sonho de
infância: o desejo de pegar uma guitarra, ligá-la e deixá-la muito alta
para os vizinhos ouvirem. E havia algo empolgante sobre isso. E este
ainda é o caso. A única coisa é que não há mais vizinhos agora - a
vizinhança está na plateia e eles pagaram para ouvir a guitarra!
E como eles pagaram. Os seis shows no Japão arrecadaram $40.6 milhões
com os ingressos vendidos, a cereja do bolo que já havia arrecadado
$105.8 milhões nos shows que ocorreram durante o ano. Ano passado, a
MPL, McCartney Productions Limited, arrecadou cerca de £27.4 milhões. Um
bom complemento à fortuna de Paul e Nancy, estimada em £680 milhões,
deixando o músico no topo da lista 'The Sunday Times Rich', dos músicos
mais ricos do mundo, pelo 25º ano seguido.
É estranho considerar, dado ao papel fundamental de Macca na história da
música, mas Sir Paul nunca foi tão popular. Tal fato seria confirmado
desde a America (onde Paul junta em média 40 mil pessoas por show), até
Moscow (onde 300 mil pessoal assistiram ao show na Red Square). O mundo,
claramente, não se cansa dele. E ele, até hoje, não se cansa do mundo.
Eu passei 8 horas, durante dois dias, na companhia do Time Macca no
Tokyo Dome. Conversei com a vegetariana equipe, com alguns fãs do Hot
Sound (para os fãs que compram esse ingresso, Paul faz a passagem de som
por cerca de uma hora), com o técnico do piano (Paul tem um interesse
enorme em todas as partes do show). As pessoas que dão forma às
incríveis turnês de Paul são empregados e colegas de longa data. Ele tem
tocado com essa banda atual - Paul Wickens, Rusty Anderson, Brian Ray e
Abe Laboriel - há quase 12 anos, o que os torna os companheiros mais
longos de Paul. Até mais que os Beatles e os Wings.
O engenheiro de som, Paul 'Pab' Boothroyd, trabalha para ele há 25 anos.
O diretor da turnê, Barrie Marshal, está a bordo há 24 anos, assim como
dois escoceses que cuidam da segurança de Paul. O engenheiro de
produção, Mark Spring, responsável pelo transporte dos dois aviões
gigantes que carregam todos os equipamentos, juntou-se à equipe depois
de trabalhar na turnê 'Drowned World Tour', da Madonna, Scott Rodger é
considerado com um novato, participando das produções há 7 anos.
Eu pergunto a cada um deles se tem algo sobre McCartney que surpreenderia as pessoas.
Boothroyd: "Ele poderia facilmente ir com você a um pub tomar uma cerveja".
Phil Romano (técnico do piano): "Eu nunca o vi perder uma passagem de som em 12 anos de trabalho".
Marshall: "Certa vez eu escrevi uma carta a ele e, em sua resposta, a
gramática estava fenomenal - ele havia colocado uma vírgula aqui, um
ponto ali. Então, sempre que eu escrevo cartas para ele, sou muito
cuidadoso!"
Ray: "Ele nunca revirou os olhos ao tocar Hey Jude de novo".
Laboriel Jr.: "Ele é fã de Breaking Bad".
Anderson: "Ele gosta de margarita. E tem que ser com suco de laranja
fresco. Essa é a sua bebida. E ele vai mergulhar o queijo e o picles
nela depois. É uma mistura muito estranha".
Rodger: "E garanto que ele estará de volta em casa para pegar sua filha
na escola na sexta-feira. Onde quer que Paul esteja no mundo, terão
aviões, trens e automóveis para pegar Beatrice na escola. Eu o vi sair
do palco no Brasil, 100 mil pessoal, pegar um avião, voar diretamente
pra Londres, helicóptero para Sussex, entrar no carro e ir buscá-la.
Para mim, essa é a marca do homem. E a idade não o atinge. Ele nos faz
sempre continuar trabalhando".
Seus filhos foram a maior preocupação durante sua visita ao Japão em
1980. Era janeiro quando os Wings se apresentariam no país, mas quando
chegaram no aeroporto, policiais acharam maconha em sua bolsa e o
prenderam. Paul ficou preso por 9 dias.
Refletindo agora, ele admite que foi uma das experiências mais
assustadoras de sua vida. "Foi estranho, sabe, porque no Ocidente não
nos preocupávamos tanto com isso e não achávamos que maconha era algo
tão grande e preocupante. Mas nós havíamos sido avisados, 'não faça
isso, isso é realmente um problema no Japão'. Então quando fui preso, eu
realmente me culpei. Eu pensei, 'você é um idiota'. O pior, pra mim,
foi envolver Linda e as crianças nisso. Eu não me importaria muito se
fosse só eu".
"Por sorte", ele completa, "eu não era apenas 'alguém', porque as
pessoas escreveram sobre isso ao redor do mundo. Havia mensagens de
Teddy Kennedy e John e Yoko, e pessoas que os japoneses respeitavam.
Então eu acho que isso teve um bom peso em minha defesa".
Como relatado no recente livro de Tom Doyle sobre Paul na década de 70,
Man On The Run, quando retornou a Londres, Paul escreveu um livro de
memórias, 'Japanese Jailbird'. Então ele guardou e nunca publicou. Paul
disse que escreveu isso para que, se James (na época com 2 anos)
quisesse ler quando completasse 30 anos, ele poderia.
James McCartney é músico e tem 36 anos agora. Ele leu o livro?
"Ah, sim!", McCartney ri. "Eu dei a todos os meus filhos uma cópia - não
sei se eles leram. Eu gostaria de ter escrito aquilo enquanto estava
lá, isso facilitaria as coisas, mas não foram permitidos materiais de
escrita - talvez para evitar que você enfiasse o lápis no nariz ou algo
assim. Então eu tinha tudo no meu cérebro, meu cérebro estava explodindo
com todos aqueles detalhes".
"Então, quando voltei, todas as manhã eu costumava escrever por algumas
horas. Isso era bom porque todos os detalhes estavam frescos. Eu dei uma
cópia para cada um de meus filhos". Paul disse que 'uma das garotas' -
Heather, artista, Mary, fotógrafa, ou Stella, designer - 'recentemente
admitiu ter dado uma olhada nisso. Mas não tenho certeza se eles leram,
são 20 mil palavras!'.
Ele insiste que nunca irá publicar o livro; mas fez o que precisava
fazer. "Foi 'catártico'", diz ele entre aspas. "Eu nunca soube muito bem
o significado dessa palavra, mas foi isso: ele se livrou disso".
E aqui estamos, de volta ao Japão. Pergunto a Paul os planos de 2014.
Barrie Marshall, o responsável em casar as datas dos shows com a rotina
da custódia de Beatrice está na Coreia do Sul, em uma missão de estudo
do local, enquanto novos lugares para a turnê estão em seus horizontes -
ele menciona Cáucaso, nome dado a uma região da Europa Oriental e da
Ásia Ocidental.
"Eu tenho algumas coisas para fazer. Eu fiz um livro, um projeto de
animação - e foi aquela garota, Nancy Shevell", ele diz, com os olhos
brilhando. "Ela estava agora: 'Oh!'", ele a imita, revirando os olhos.
Shevell entrou na sala. "Sinceramente, eu não estava falando de você,
baby!", diz ele brincando.
"Acho que você estava sim", responde ela. "Olá, querido!", Nancy diz, inclinando-se para me cumprimentar.
"Estou contando pra ele toda a história da minha vida", McCartney diz.
"Bem, ela quase nunca é contada", diz ela ironicamente.
Retomando o assunto, Paul explica que o 'projeto de animação' é uma
adaptação cinematográfica do livro infantil 'High In The Clouds', o qual
ele ajudou a escrever há oito anos. O filme será musical, então ele tem
algumas músicas a escrever. "E então", ele completa, "verei o que
Barrie tem a dizer. E ele dirá: 'eu tenho uma oferta de tal e tal' e eu
direi: 'Cazaquistão, aqui vamos nós?'. Poderia ser Cazaquistão", Paul
diz, sorrindo, "nunca se sabe".
Mais tarde naquela noite - depois de outro show espetacular com 3 horas
de duração e depois (como dita a tradição) de todos aplaudirem a suada
banda no ônibus, que os leva de volta ao hotel antes mesmo dos fãs terem
tempo de levantarem-se de seus assentos - McCartney organiza uma festa
privada regada de bebidas na cobertura do hotel que está hospedado. É
uma festa de aniversário para Nancy, que faria 54 anos no dia seguinte.
Em um certo momento da festa, Paul fala com todos os grupos espalhados
pelo bar, pista de dança e pelo buffet vegetariano. À medida em que ele
anda pelo salão entre as, aproximadamente, duas dúzias de pessoas, é
possível notar que ele está preparando o lugar para alguma coisa. E
então é Paul com sua alegria saltitante, em sua zona de conforto,
rodeado de amigos próximos e da 'família Macca', à meia-noite, ele
comanda o piano e canta uma versão animada de 'Parabéns a você'.
Durante o resto da noite, o DJ da turnê, Chris Holmes, estava tocando
músicas no máximo volume. Ele mudou a agitação para 'You Really Got a
Hold On Me', na versão dos Kinks. As duas primeiras pessoas na (não
existente) pista de dança foram Paul e Nancy. Holmes seguiu com 'Nowhere
to Run', de Martha and The Vandellas. Feliz, o casal continuou
dançando. Ninguém se juntou a eles. E eles pareceram não ligar.
Fonte: Telegraph e The Beatles Report ( Tradução)